Os três anos de publicação no Brasil da série Mythos – muito suspense, terror, monstros do espaço e algumas piadas
* Por Marcelo Tomazi Silveira
Recentemente, a revista Dylan Dog, publicada pela Editora Mythos desde agosto de 2002, ganhou um importante prêmio de âmbito nacional, o HQ Mix (veja matéria completa). E a categoria foi a de “melhor revista de terror” (referente ao ano de 2004). Mas seria Dylan Dog uma revista genuinamente de terror?
Considerando somente a série ainda em curso (que já chegou ao número 34), nós podemos traçar um certo padrão de constância para os gêneros até agora abordados? Como tentativa de apreensão do complexo conteúdo das histórias do Investigador do Pesadelo, vamos fazer um passeio pelas diferentes temáticas, que brotam do terror mais cru e mortal e vão até as narrativas fantásticas e oníricas típicas do mundo dos sonhos e dos pesadelos.
Dylan Dog #1, cujo título simplesmente era “A história de Dylan Dog“, trouxe elementos do passado, até então misterioso, do personagem. Essa narrativa de Tiziano Sclavi, o “pai” da criatura, já forneceu uma clara indicação de algo muito importante: nada é o que parece ser em Dylan Dog. Do espaço sideral e distante até o passado do tempo dos piratas, de zumbis famintos até alienígenas que são portais para outras dimensões. Há vários gêneros presentes, sendo difícil identificar um que seja “o” mais importante. As linhas temáticas e narrativas se cruzam, eliminando fronteiras e mesclando-se. Se há muitos gêneros convivendo sob o mesmo teto, então como dar verosimilhança a um personagem que na superfície é só um detetive particular?
Dylan Dog, no entanto, não é um detetive qualquer. Desacreditado e até ridicularizado pela mídia, ex-policial da outrora “infalível” Scotland Yard (após a fatalidade com o estudante brasileiro no metrô de Londres em agosto/2005, a polícia considerada uma das mais competentes do mundo está sendo duramente criticada), ele decide abrir um escritório para oferecer seus serviços como detetive particular, ao lado do fiel parceiro, um sósia (ou o verdadeiro, como ele diz) do comediante Groucho Marx.
Até esse ponto, podemos perceber marcas claras das histórias policiais, gênero “inventado” pelo americano Edgar Allan Poe (1809-1849), cujo mais célebre conto apresentava o detetive francês C. Auguste Dupin às voltas com um brutal homicídio na típica cena do crime com as portas fechadas por dentro. Essa pequena pérola da literatura chama-se “Assassinatos na Rua Morgue” (conforme tradução de William Lagos, mas tb. visto no Brasil como “Crimes na Rua Morgue”) e foi um marco para o desenvolvimento desse gênero no campo ficcional – apesar dos textos anteriores que também podem ser atribuídos à tríade crime-suspense-mistério.
Então Dylan Dog é uma revista de quadrinhos com histórias policiais? Fica muito difícil afirmar isso, pois muitas vezes os elementos típicos do gênero – um crime misterioso, a investigação, os suspeitos, a revelação surpreendente nas últimas páginas – acabam em segundo plano. A prova disso está nessa primeira aventura sob o selo da Mythos (onúmero 100 da série italiana): há criaturas fantásticas, mortos-vivos, alucinações e todo o tipo de elemento estranho e quase sem explicação.
Essas criaturas quase sempre percorrem as páginas das histórias, é rara um edição em que o mote seja simplesmente um crime cometido por um assassino humano qualquer – seja ele louco ou não. Assim podemos concluir que Dylan não é de fato um detetive qualquer. Após sua estada na polícia londrina, ele abre um escritório para investigar… monstros! E esse é o motivo para sua credibilidade não ser tão grande. Um detetive que caça monstros? Quem acreditaria nisso? Da fachada de história policial avançamos para um terreno sinistro, o das criaturas que a mente humana não pode conceber ou explicar.
Se podemos dizer que Dylan Dog é um gibi eventualmente de histórias policiais, então podemos dizer que ele é uma narrativa de terror, dada a presença quase constante desse tipo de personagem – os monstros? Tomando como exemplo ainda esse primeiro número, há elementos típicos do gênero, como os mortos-vivos sobrenaturais, como que saídos do clássico “A Noite dos Mortos-Vivos” (Night of the Living Dead, filme em preto e branco dirigido por George Romero em 1968 e refilmado em 1990 por Tom Saviani).
Zumbis são personagens constantes em Dylan Dog. E não só: monstros, muitos monstros, os mais assustadores que os desenhistas podem conceber. E aonde mais eles aparecem a não ser em uma narrativa de terror?. Vejamos o que os números seguintes do fumetti revelam: Dylan Dog #2, “Cagliostro!”, trouxe um infanto-zumbi assustador, uma criatura-peixe bípede, um monstro-disforme-gosmento, um gato assassino e até uma versão de Leatherface, do clássico de Tobe Hooper “O Massacre da Serra Elétrica” (The Texas Chain Saw Massacre, de 1974, filme sobre o assassino serial Ed Gein).
Em que outras histórias teríamos assassinos descontrolados manipulando serras movidas a motor e decepando cabeças? Esse tipo de terror – e aqui entramos nos chamados “subgêneros” desse gênero, algo entre o thriller e o gore – é uma constante nas narrativas do Investigador. Assim, temos uma mistura explosiva entre os gêneros policial e terror. Mas não há somente isso em Dylan Dog, não há somente o “assassino monstro” de cada edição, apesar de uma certa constante.
Dylan Dog #4, “Partida com a Morte”, também transita entre os subgêneros do terror, porém com uma abordagem mais “clássica”, a fábula de que devemos ou podemos decidir nosso futuro, se vivemos ou morremos, em uma partida de xadrez com a Morte – sim, ela mesma, a senhora de face descarnada que empunha uma foice. Uma visão aqui mais “romântica” de um gênero tão perturbador.
Em Dylan Dog #6, “Assassino!”, o inimigo da vez é um matador indestrutível que muito lembrou o robô de “O Exterminador do Futuro” (The Terminator, dirigido por James Cameron em 1984), porém a fonte de inspiração para a criatura é a lenda judia dogolem, criatura feita de barro.
Monstros horrendos aparecem novamente em Dylan Dog #9, “Nas Profundezas” – que mistura elementos do filme “Psicose” com mutaçõesfreaks que nunca deveriam ter saído debaixo da terra – e em Dylan Dog #10, “A Ilha Misteriosa”, que mostra uma terra de seres híbridos de humanos e de animais – como no clássico livro “A Ilha do Doutor Moreau“, de H. G. Wells. Esses vários subgêneros compõe um quadro bastante amplo para que possamos marcar a revista de Dylan Dog como uma “simples” narrativa gráfica de terror. Há vários tipos de terror, assim como há vários tipos de medo.
Então devemos situar a revista entre os gêneros policial e terror? Não com tanta pressa… Dylan Dog #15, “O Terror do Infinito” avança sobre um outro patamar de narrativas, aquelas calcadas na ficção fantástica sobre a existência de vida em outros planetas. O personagem Whitley Davies é um homem assombrado por forças que não compreende, e traz um trauma de infância que pode revelar – ou não – uma abdução por alienígenas.
Nesse ponto a revista lembra muito a revolucionária série de TV “Arquivo X” (a série foi um fenômeno nos anos 90, conquistando elogios do público e da crítica por alternar episódios pertencentes à narrativa maior, a “conspiração” alienígenas, com histórias sobre monstros, assassinos seriais e outros fenômenos que não se enquadravam em uma investigação convencional do FBI). “Arquivo X”, criação de Chris Carter, tinha como gênero e mote principal uma conspiração entre humanos e alienígenas para a dominação e controle da Terra.
Abdução era uma palavra constante na série, os raptos de humanos por supostos extraterrestres e esse também é um assunto tratado pelos roteiristas de Dylan Dog. Mas não é só isso que Dylan Dog eArquivo X têm em comum. A série de TV, que fez sucesso por nove anos, dosava muito sabiamente as tramas sobre alienígenas, e suas intrigas e conspirações, com histórias sobre assassinos seriais, mutações, criaturas fantásticas e/ou míticas. Esses momentos, um certo descanso na linha narrativa principal, eram até chamados carinhosamente pelos fãs de “o monstro da semana”.
Esse tipo de ficção, de cunho fantástico, não marcou presença apenas uma vez em Dylan Dog: o número 23 da revista trouxe a aventura “Quando Caem as Estrelas”, que retomou os dramas do abduzido Whitley (esse dois capítulos fazem parte de uma trilogia que se completará com o volume 136 da série italiana, “Lá em Cima Alguém nos Chama”, ainda inédita no Brasil). São histórias que poderíamos enquadrar como narrativas de ficção-científica, ou seja, a busca de explicações racionais para fenômenos estranhos (segundo o jornalista Marco Moretti, ficção-científica é “todo relato em que nossos sonhos ou pesadelos (ficção) são abordados de uma maneira racional (científica)”. Cf. Ficção científica ou fantasia? Wizard Brasil, São Paulo, v. 2, n. 23, p. 51, ago. 2005).
Se Dylan Dog não é uma história policial pura, por não transitar somente pelo lado investigativo e criminal – como outro fumetti Bonelli de sucesso, esse sim um representante do gênero, Júlia (chamada no Brasil “J. Kendall, aventuras de uma criminóloga“), de Giancarlo Berardi – e também não é uma narrativa autêntica de terror, pela falta de uma constante – algo que o fumetti Dampyr, sobre vampiros e criaturas da noite, tem – então de que gênero ou tema estamos falando?
Pois o enigma pode facilmente ser resolvido se aceitarmos a série criada por Sclavi como um conjunto de gêneros, sendo que o único fator mais ou menos constante é a presença do sobrenatural, como algo fantástico ou extraordinário, uma anomalia à natureza ordenada.
Assim, aventuras com um elemento criminal a ser investigado podem muito bem desviar para um assassinato cometido por uma criatura de outra dimensão ou do futuro da vítima, tramas claustrofóbicas com monstros disformes e nojentos podem culminar em líricas fábulas com seres elementais… entre outras viagens.
Cada aventura de Dylan Dog tem quase cem páginas não-lineares, cujo tema, ao fim e ao cabo, pode ser a mente humana com seus monstros, demônios, anjos, ódios reprimidos, desejos por vingança, infâncias perdidas e traumatizadas ou o medo da violência terrível do nosso dia-a-dia. E também os nossos sonhos.
E não é verdade que nos sonhos tudo isso é possível? Pois todos os gêneros não são prateleiras em nossas vidas, mas peças do quebra-cabeças de que somos constituídos. Pelos caminhos dos sonhos e dos pesadelos, Dylan Dog e seu fiel e “insuportável” parceiro Groucho transitam. Em busca de uma luz sobre a insanidade que é a vida real, um pesadelo de estar sempre acordado.
Você teve um sonho ruim? Relaxe… Quando acordar pode ser bem pior. Se for forte, resista. Se for fraco, morra. Mas se tiver um telefone por perto, ligue para o Investigador do Pesadelo. Talvez ele possa fazer algo por você…
Fontes:
http://texbr.com/dylandog/noticias/2005ago29_dydog_a.htm
http://texbr.com/dylandog/noticias/2005ago29_dydog_b.htm